“Você precisa se adaptar à sociedade”,  não sei se foi essa a frase ipsis litteris, mas é exatamente esse o sentido. A gente ouve isso tanto. Pelo menos eu escuto. Já ouvi outras vezes e por um tempo, acreditei nisso,  busquei isso. Mas será que eu tenho mesmo que me adaptar à sociedade? Mas o que seria isso? Fingir ser o que eu não sou? Alguém que diga isso não sabe o real significado de “tentar adaptar-se a sociedade” para uma pessoa autista.

Quando falam para mim que preciso me adaptar, lembro da história da irmã da Cinderela,  sabe aquela que no momento de calçar o sapatinho de cristal, corta os dedos fora? Acho que no filme da Disney isso não acontece, mas alguns livros relatam essa parte. Para que o pé coubesse no sapato,  ela decide amputar os dedos e assim o sapatinho passa a caber. Por um momento, ela passa a ser a escolhida, mas os pés sangram, a dor é insuportável, imaginem: uma ferida aberta sendo apertada por um sapato de cristal que, por si só, já me parece tremendamente desconfortável. Imagina aquilo pressionando e em atrito com uma ferida aberta? Agora pense eu autista que perco a paz com qualquer par de tênis novo e fofinho com pé mutilado e num sapato duro de vidro?

E eu me pergunto, será que os autores ou mesmo as pessoas que reproduziram essa história se deram conta da violência que esse trecho retrata? É de uma opressão sem tamanho. É cruel. E assim também é quando você diz a um autista que ele precisa se esforçar para se adaptar a sociedade, fazer isso é como pedir para que alguém ampute os dedos para que o pé caiba no sapato ideal, aquele sapato que faz de você “alguém na sociedade”.

Mas eu disse isso tudo porque ouvi essa frase na sexta-feira pela manhã numa perícia do INSS. Era uma senhora gentil, a perita, mas com essa gentileza e simpatia ela sugeriu algo que para mim soa como um pedido de que eu corte fora um membro. Oprime o que eu sou. Como posso fazer isso? Como posso deixar de ser o que sou sem que isso me cause nenhum dano?

Eu tive que me afastar do meu emprego, eu gosto do trabalho, não tenho atrito com nenhum colega, mas estava me fazendo mal a exaustão e o estresse que toda aquela interação social e aquele tanto de estímulos de cada dia me causava. No trabalho, o esstresse é intensificado e por isso eu acabei adoecendo. Pense que para mim, trabalhar 8h em meio a tantos estímulos, é como ter jornadas de 12,  14,  16 horas seguidas de trabalho, eu percebo que volto para casa muito mais cansada que colegas que fazem trabalhos mais extenuantes que o meu. Meu trabalho em si é simples, o que complica é tudo que está no seu entorno.  

Claro que não foi só o trabalho a causa dos meus problemas de saúde, ele talvez tenha sido a tal cereja do bolo, o estopim, mas o que me adoeceu mesmo foi o resultado de todos os anos de tentativas falhas de me “adaptar à sociedade”, minha doença foi na verdade uma infecção purulenta causada por eu ter me disposto a extirpar meus dedos dos pés para que estes coubessem nos sapatos que se usa em sociedade. Mas meu pé é chato e grande e não se encaixa nessa sociedade sem que sinta dor, sem que seja mutilado.

Por muitos anos eu tentei me encaixar e me adaptar,  consegui muita coisa, me adaptei sim a muita coisa,  o que não se deu sem que me fosse cobrado um alto custo. Eu simplesmente não sei o que é ter ombros relaxados e molinhos, a tensão é uma constante na minha vida, porque as vezes,o simples fato de pedir uma informação ou perguntar sobre o dia de alguém pode ser doloroso e incômodo. Mas eu fazia assim mesmo, ignorava a boca seca, a dor de barriga,  aquele apertão dolorido no ombro quando dá até para sentir os nódulos se formando, a ansia de vômito, a tremedeira das mãos. E eu tentei fazer disso uma timidez que me ataca em algumas situações (quem me conhece sabe que não sou nada tímida).

Passei anos fingindo que escuto a fala das pessoas enquanto minha cabeça briga tentando abaixar o volume dos ruídos externos sem sucesso, vocês não têm ideia do quanto calcular e tentar decifrar como devo agir e o que devo falar em cada ocasião, das mais complexas as mais triviais é profundamente estressante. E amigos, mais uma vez, se der para resolver por whatsapp, não me liguem, falar ao telefone é muito cansativo, tem muito ruído e é difícil focar e responder no tempo que se espera. Descobri que acenar a cabeça e sorrir é resposta para quase tudo (para os que me conhecem, se eu aceno muito a cabeça e sorrio o tempo todo para você, tem grandes chances de eu não estar entendendo nada do que está sendo falado, fica a dica!).

Eu estou me entendendo melhor agora, e estou entendendo que meu pé chato e sem cava jamais vai caber no sapatinho de cristal e tudo certo, já me resolvi com isso.   A frase “mágica” e psicofóbica de que “você precisa se adaptar à sociedade” não vai mudar isso, não é um pó de pirlimpimpim que  vai simplesmente reduzir as minhas dificuldades com interação social ou diminuir o desconforto e mal estar que fico por conta do transtorno do processamento sensorial. Não é assim que eu vou melhorar, forçar uma adaptação é a receita de como ir para o fundo do poço em 3 passos, é a receita de como adoecer em pouco tempo, é a receita de como aumentar suas crises em 2 lições e eu não quero isso para mim. Acho que ninguém quer.

Exigir, ou mesmo “aconselhar”, lembrando que esta não é a função de um perito, que um autista se “adapte” à sociedade, é somente pedir que ele deixe de ser quem é e isso além de não ser possível, é profundamente opressor.

Eu não soube o que responder no momento da perícia onde ouvi que eu sou uma pessoa nova e capacitada ( leia: uma coitada com medo de conviver com as pessoas) e que eu preciso, mais uma vez repetindo de novo again: me adaptar à sociedade. Eu fiquei monossilábica, surpresa e oprimida ( acredito que sejam esses os nomes dos sentimentos que tive no momento). Eu tive raiva de mim por isso (raiva eu sei o que é), eu precisava ter respondido, eu tenho embasamento para isso, mas no consegui. Me consolei justamente pelo fato de que nunca mais vou me cobrar ter aptidões que não me cabem, sou péssima em argumentar sob pressão. Respeitar minhas deficiências e meus limites é o que faço de melhor por mim e quanto a sociedade, que tal se a gente se esforçar um pouco mais e tentar criar um ambiente adaptado para todos ao invés de desejar que um grupo minoritário se adeque a um padrão estabelecido pela maioria? Que tal começarmos respeitando as deficiências das pessoas ao invés de diminuí-las por isso? É um bom exercício para 2018. 

Obs: O título ficou legal, né? Mas não é meu não! Foi sugestão da amiga Rita Louzeiro. 

6 comentários sobre “A odisséia de uma autista adulta na perícia do INSS

  1. MUUUITO LEGAL este texto!!! Adorei!!!

    Posso te dar uma sugestão? 🙂
    Já que você relata sentir inúmeros sintomas físicos e desgastes sensoriais trabalhando em empregos convencionais, você já pensou na possibilidade de trabalhar como autônoma, em ambiente e ritmo mais tranquilos para você?
    Por exemplo: você escreve muito bem! Já pensou na possibilidade de ser blogueira profissional (que ganha dinheiro escrevendo), ou escritora?
    Assim, você além de mostrar seu talento, conseguirá ter um trabalho adequado às suas necessidades (ou seja, em sua casa, num cômodo que se sinta confortável, no ritmo que lhe for mais confortável, sem patrão colocando regras e prazos incompatíveis com suas condições físicas e sensoriais…
    Assim,não haverá necessidade de ter de ficar se desgastando (e se humilhando!) na tentativa de conseguir aposentadoria pelo INSS.

    Que tal?
    Mais uma vez, PARABÉNS por este e pelos outros textos!! Grande abraço, e sucesso!!

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    1. Que bom que você gostou! É uma sugestão bem válida, gosto de escrever, me expresso melhor assim! Mas por ora, não tenho capital pra investir e não posso ficar sem renda enquanto espero por retorno financeiro. Não penso em aposentar tão cedo, só precisava manter o auxilio doença por mais tempo até que a disidrose fosse controlada, para não ter risco de voltar nas primeiras semanas de retorno ao trabalho (o que já está acontecendo). Mas conseguir viver do que escrevo seria maravilhoso. É algo que gosto muito e me faz bem. Muito obrigada! Foi bom ler suas palavras hoje, estava carecida delas!

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      1. Oi, Iara!
        Não é tão difícil, assim, ter um blog ou site como fonte de renda complementar! Tente pesquisar sobre o ”Google Adsense”, que é uma forma comum de “monetizar’ (isto é, ganhar dinheiro com o blog!) Na internet vem as instruções de como fazer isso… dê uma olhada! 🙂

        Basicamente, trata-se de firmar um acordo com o Google, para que sejam exibidos anúncios em seu blog, e então, quanto mais visualizações tiver cada texto seu (e, consequentemente, os anúncios), mais a empresa te paga.

        Ou, se quiser, você pode tentar parcerias com empresas da área de saúde ou educação (que, acredito, seriam um excelente público-alvo para seus posts) e tentar patrocínio através delas (em troca de propagandas das referidas instituições). O que acha? Note que é um trabalho de troca (você continua sendo freelancer, ou trabalhadora autônoma, e eles têm as divulgações das empresas deles, sem vínculo trabalhistas entre ambos). E ambos saem ganhando, hehe! =D Que tal? 🙂

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  2. Olá Iara. Estou amando cada linha que você escreve. Tenho Síndrome de Irlen Severa , e atuo na área de inclusão. Minha sensibilidade sensorial é muito semelhante a sua. Também tenho um incômodo grande com alguns sons, tais como: palmas , barulho de mastigação e hoje passei mal no ônibus. Sempre passo mas hoje tinha um cheiro de urina de alguém. E isso foi péssimo. Também não consigo sustentar mentiras. Também não tenho muito ” filtro social”… Só depois de buscar pesquisas na área de Neurociências eu me encontrei. Amo perfume de flores, alguns perfumes e cheiro de livros.

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